sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Tapete

São como triângulos de gelo
os segredos traídos
nas cortinas da tua janela
No chão,
onde me deito,
funde-se a sombra das vontades que me fogem
enquanto eu,
quieta,
vou fechando os olhos ao ritmo dos teus planos
Se anoitecer assim
e as cortinas forem só lembranças
promete-me
que este segredo não será traído sempre que for recordado
Tremem-me os dentes na ausência de frio
É sempre o calor da nudez que me assusta

São de tantos sabores os teus dias
E eu
dilato
em esferas que me comprimem
Não posso querer ficar

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Inverso

Naquele dia acordei. Acordo todos os dias, é um facto. Acordei naquele também. Nem sequer foi um acordar diferente dos outros mas recordo-o. O quarto que não era meu estava escuro, frio e calado. Tão calado que todos os sons se empurravam contra as paredes e delas saltavam como cascatas de ecos impossíveis de aguentar.

O som das pálpebras, das minhas, que pesadas se abriam e fechavam, era como martelos em chapas metálicas: batidas agudas, lentas, latejantes. Por causa disso quis manter os meus olhos abertos o máximo de tempo que conseguisse. Começaram a arder, primeiro pouco, nos cantos dos olhos onde nascem lágrimas, depois um ardor alastrado, a falta de humidade por toda a superfície ocular. Pensei que iam paralisar os meus olhos, fixados numa parcela de parede que mal distinguia pelo escuro do quarto. Seria um trágico fim para a minha visão, assim gasta num pedaço de parede impossível de reconhecer, com tão pouca luz, tão poucos detalhes, pouco para recordar, para decorar, nos instantes últimos dos meus olhos. Fechei-os. Outra vez os martelos, as chapas. Mais do que som agora. A mais o movimento das pálpebras recolhendo o redondo dos olhos secos e ásperos, resistindo ao movimento aqueles pedaços de pele raspando-me a imagem da parede irregular.

Estranho como o corpo do meu lado parecia não fazer qualquer som e eu sentindo-lhe o movimento pelos lençóis que subiam e desciam ao ritmo do seu sono pesado. Virei-me o mais devagar que pude (ainda assim naquele silêncio cortante os pequenos estalidos das molas do colchão pareciam dezenas de armas a disparar, algumas em simultâneo; balas em trajectória definida, cortando o ar que não se corta). Durante o processo rotativo foi-se aproximando o cheiro daquele novelo de cabelo suspenso entre ombros nús e uma almofada gorda. Foi bom sentir aquele cheiro doce a crescer nas minhas narinas, ocupando o cheiro de corpos repousados que os quartos de dormir sempre têm.

Queria mais luz para ver melhor as ondas irregulares daqueles fios de cabelo: a pequena claridade invasora, infiltrada pelos cantinhos dos buracos dos estores, era pouca. Restou-me pegar em fragmentos e com eles construir o resto da imagem na minha mente.

O silêncio foi-se calando, menos perturbador, ou eu mais fundido nele. Como uma fábrica em início de laboração os meus neurónios iam começando a despertar e os meus dedos dos pés começando a agitar-se. A mudez do mundo começava a revelar-se enquanto adormecia o meu mundo de sonho, entre lençóis e fios metálicos do cabelo dela. As minhas mãos reais procuraram-lhe a perna quente, tocaram-lhe procurando um sítio onde encaixar, pararam abertas sobre o umbigo, onde lhe sentiam o respirar adormecido nos movimentos abdominais.

Gostaria de me lembrar que aconteceu depois mas já só me encontro no barulho do trinco da porta a fechar, do meu suspiro tranquilo, das mãos nos bolsos depois apertados todos os botões do casaco, do vento frio que aquele mentiroso sol de inverno oferecia. Não me consigo lembrar se falamos. Sei que falei, não sei se com ela, não sei se só comigo. Naquele acordar nada acordou de novo em mim mas aqueles cabelos metálicos, que não sei se cheguei a amar, acordam em mim todas as manhãs de sol de inverno.