segunda-feira, 5 de maio de 2008

Conversas d'olhos

Um café, um bar, uma mesa, quatro cadeiras. Só ocupamos duas. As outras ficam, nem nuas nem tristes, olhando-nos. Querem de nós, querem que façamos o lugar de quatro.

“Gosto de ti porque tens conteúdo.”

Recordo quando o disseste. Recordo os teus olhos quando o disseste. Recordo o trago que deste depois. O teu copo molhado de fora mostrando o frio de dentro. De dentro do copo. Talvez tenhas feito a vontade às cadeiras (talvez, se com vida se pintassem, tivessem esboçado um suspiro palpitante e aguardado o desenrolar).

Não recordo se ficaste vermelho, estava escuro. Recordo a música, recordo o meu embaraço. Sorri, não disse nada, projectei os olhos lá longe, numa qualquer prateleira. Fiquei embaraçada por ti, imaginando o teu embaraço ao dizê-lo. Tento decifrar que te disse a ti este momento. Imagino-te combatendo hostes de barreiras, de distâncias, de contenções, de portas e mais portas e mais chaves. Tudo pelo meu conteúdo.

Imagino, depois de toda esta luta, a sede que a evidencia no copo que levaste à boca, que te tenhas sentido entre a esperança e o desalento. Esperançoso que eu tivesse entendido tua luta, tua conquista, o quanto te custara dizer aquelas palavras todas e juntas. O desalento, sim. Desalento de saberes que seria pouco. Que a tua batalha, tuas espadas, teus monstros são pouco. Que eu provavelmente quereria mais – mas ninguém consegue duas batalhas seguidas.

O curioso de tudo eram os teus olhos. Não pretendo banalizar, já vi muitos olhos inexpressivos. Olhos são só olhos. Mas os teus às vezes queriam saltar, falar por ti. Quase tinham a ousadia que te faltava e depois logo fugiam. Nunca os decifrei bem mas foi por eles que te quis ver mais vezes. A minha esperança era que eles falassem mais que tu e que tu, depois de denunciado por eles, falasses por ti (em modo mais simples que conversa de olhos). Não sei quantas vezes insisti, sei que um dia entendi que entendia só partes, que eram poucas. Despedi-me deles nesse dia. Eles entenderam, despediram-se de mim, ao longe, sem muito alarido: porque eles sabiam mas tu ainda não. Era uma despedida prolongada.

Guarda-me. Um dia quando tu fores os teus olhos relembra-me. Abre esta porta, sobe as escadas, toca. Também tenho um copo para te matar a sede.

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