quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Duas mãos

Duas mãos
Cinco dedos em cada
Teias de riscos, de marcas do tempo,
quase transparentes
só visíveis com a luz que reflectem
Cinco unhas em cada mão,
vermelhas, pintadas de sangue e fogo
pingam gotas de vida pelas minhas mãos
um rasto de eternidade
um eco infinito a cada gota que toca o chão
uma névoa de cerejas a cada gota que flutua
Sinais que me fazem parar, mecanicamente
Acho que sou feita de matérias primitivas
Cinco dedos, cinco unhas, cinco garras feitas para rasgar
A fusão da seiva da vida que me escorre com a carne liquida da minha presa
Os instintos em mim
As ordens descodificadas que pequenos compostos cá dentro provocam
Cadela com o cio
Missão foder e espalhar genes
sem escolhas, sem hesitação, sem dúvidas
Foder usando o fodido instinto
Sem voz sem olhos nos olhos
sem falsas carícias num abalo de consciências rotas
Até sem prazer,
como uma dependência,
só o aliviar da vontade impossível de reprimir,
sem prazer porque o objectivo é chegar ao fim
despejar todas as descontroladas ordens que a dominam
Sou feita de descontrolos
Sou a inquieta tesão de uma flor de primavera
Penetrada sem licença por feios insectos

Duas mãos
Sangue e fogo
Instintos

assim

não me quero martirizar por ser assim e sou forçada a ser uma mentira para viver no mundo de todos

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Dia

Em verniz brilhante gostava de escrever o teu nome
Em letras somadas
um sussurro de mim
Se um dia eu soubesse que seria assim
deixar-me-ia dormir nos dias
até este dia chegar
Não tenho muito
e tenho um pouco de nada
(ainda assim impuro e imperfeito)
Partilho-o contigo,
espero que em sementes se transforme
raios de luz, nossa, entre nuvens
minhas sementes ganhando vida
Preciso de ti,
não me custa mais dize-lo
Estranho esta dependência escolhida
mas é bom
deixo-me ficar
leva-me

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

sem título

Pudesse eu ser mais, mais teria para te dizer
Pudesse eu ter sido feita de pétalas de amor
Um jardim, uma espécie em vias de extinção
Nego, fujo, ignoro, desprezo?
Pergunto porque não sei
Acho que estou num ciclo que não tem um tempo certo

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Merda

Segura, andando, deslizando...
delicados pés em delicados sapatos
um passo mal dado
...e a merda do cão da vizinha a esborrachar-se nos meus pés
Da que cola, não larga
Paro e o inoportuno cão balofo ainda me tenta morder
Tenho de correr e parto um salto…
Sigo caminho,
na ridícula tentativa
de não deixar perceber a mole mancha castanha
e o salto do sapato do pé que tenho agora na mão
Hoje que me programava para brilhar sem qualquer erro
dou comigo assim
Arrisquei no taileur preto que já me assentou muito bem
(em tempos)
E distraída com a corrida contra o balofo
dou conta que me saltou um botão da saia
Aperto o casaco escondendo a casa do botão rebelde que fugiu de casa

Rendida ao cansaço de andar em pé-coxinho,
paro numa rua paralela,
tiro o sapato e vejo as finas meias rotas no dedo
Enquanto procuro um lenço e tento limpar aquele bagaço
passa o meu soberbo colega do piso de baixo
- bom dia (e sorri, deixando o rasto de armani)
- bom dia (e coro, rodeada do cheiro daquele cócó matinal)
Procuro mais lenços em vão,
mala de mulher está sempre cheia do que não faz falta
Entro na sapataria da esquina,
não sei se é pior o meu cheiro ou o cheiro a naftalina da velha ao balcão
Um único par de sapatos com o meu número...
colecção de 76, ortopédico, saltinho enfadonho de 2cm
verdadeiro couro... rijo que nem cornos
Naquele descontexto em que fico
sigo para o trabalho, atrasada
o patrão dirigido a mim em tom agressivo...
hesita ao ver-me chegar naquele reparo
estranha-me ao olhar para os meus pés
-onde foi arranjar isso?
vira costas e segue.

A pirosa loira da recepção fica a rir-se baixinho
Subo o elevador
Cruzo-me de novo com O do andar de baixo
Corada, embaraçada, só queria chegar depressa ao meu piso
O elevador pára,
estamos presos
O lingrinhas do andar de cima começa a guinchar baixinho,
alivia a gravata, para poder guinchar melhor
Acende-se aquela luz verde,
pronto …
eu pior do que a cheirar a merda
só a cheirar a merda e de verde,
que vai mal com a minha pele

Naquele desconforto O lá de baixo:
- Os seus outros sapatos eram mais bonitos
(e sorri, continuando a cheirar bem)
Vermelha,
mãos suadas,
sorriso estúpido na cara,
só me sai um grunhido de afirmação parecido com os do lingrinhas

- .... quer almoçar comigo hoje? (sorrindo para mim, O lá de baixo)

Afinal merda de cão tem o seu charme

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Iões

Localizo a origem precisa do que me dás
posso tocar-lhe porque é concreto
Não pretendo desiludir-te
mas existe um concreto em tudo
A física existe até na química
Poderia roubar-te essa origem,
criar um défice,
criar um balanço desfavorável
que me favorece a mim

Engenho mecanismos de troca
Recebo o teu tudo
dou-te o meu vazio para que o preenchas
Partilha de volumes,
de concentrações limite
que pressionam as paredes do meu cubo
Tenho arestas…
E gosto de coisas redondas
Exponho-me à erosão,
deixo os elementos do mundo
deteriorarem os meus cantos
Espero um dia poder rolar
ganhar aceleração a cada novo terreno percorrido

Fascina-me a orgânica das coisas
as medidas dos sentidos
o calor latente dos teus sonhos

Se partilharmos os nossos iões talvez possamos orbitar em harmonia nesses sonhos

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Céptico

E na ansiedade das minhas perguntas,
no triste engano das minhas palavras
Só emerge a fraca sorte
do céptico ser que eu sou

domingo, 13 de janeiro de 2008

Espectros

Percebi que não tenho de lutar contra o que eu sou, mesmo que o que eu sou seja um ser com uma sombra escura e pesada… as sombras e os espectros não me confortam, não me dão paz, mas são tão meus como tudo o resto que tenho E se tiver que chorar até ao fim dos meus dias, até ao fim dos dias vou deixar as lágrimas descer pela minha cara, molhar o meu pescoço… não me esquecer do que não me quero lembrar, do que já nem importa mas não me larga. Porque não me larga e não vai deixar, percebi. É meu, sou eu, está aqui do meu lado, na minha frente… sem nome sem medo sem alma… sou eu num reflexo, sou eu o reflexo

Fumo

O fumo espesso da minha chávena põe-se entre nós,
confiante
Eu, que bebo
Tu, a fotografia
teu sorriso estático
tua falta de movimento
tua mudez
Estremeço porque oiço
Fotografias também falam
Guerra escondida, secreta
Secretamente observo
Observo mesmo sem fotografias
Observo mesmo que tudo seja negro como o café que arrefece…
esqueço-me da chávena nas mãos
Queimam
as mãos
as tuas as minhas
as minhas quando tocam as tuas

Nem sei que sinto por ti
Nem sei se te procuro mais quando não te procuro
Não sei se te ignoro ou te imploro,
se te quero perto ou distante
Sei que quando estás distante estás mais perto

O teu erro sou eu
Mãe da culpa,
tua culpa que cresce em mim como um feto
Não se vê
mas muda os meus contornos,
as minhas formas,
como um feto
A mim
Mudo eu com o teu erro, a tua culpa
Esqueço, reconheço, perco, destruo
recebo, não dou
Agarro-o nas minhas mãos
à tua frente
(quero que vejas porque não vou dar-te)

Jogo em silêncio com imagens,
pigmentos sem vida
Acabarei como fumo,
entre o tempo e as memórias
num pedido
numa súplica
num resto de prato que ninguém quer
Mãe sem filho para embalar
embalada pela tua nossa culpa
Culpa de nada
Porque de nada também se pode ser culpado