terça-feira, 29 de abril de 2008

Conchas

Saíste aquela porta azedo comigo. “Ninguém pode não saber nada”, dizias. Queria dar-te razão, sentar-me ao teu lado e partilhar contigo, mesmo que apenas uma partilha de discórdias. Tu só não entendes a falta de partilha. Queria-o, verdade. Como poderei dizer-te que o queria de verdade? Acho que esgotei os meus cartuxos de oportunidades contigo. Tu és tão sólido, tão tu. Como? Mais ainda: como consegues olhar-me e ter compaixão? Porque és sempre tu que voltas e não me deixas ir. Já sabes que me deixando eu me deixava ficar. Por aqui. Por aí. Por dentro e por fora. Sou demasiado enfadonha para suscitar sequer compaixão. Nem sei se a tua compaixão é boa, se a quero, se uma dádiva ou uma esmola. Sei que nunca estou no caminho certo, teimo em não estar. Mais não é do que um capricho. Se não fossem os meus caprichos eu não saberia de que matéria sou feita. Tu sabes mais de mim. Muito mais. É por isso que te incomoda, por isso que te impacientas: tens a solução, sabes aplicá-la, sabes-me bem. Só não sabes como não sei. Não entendes como se pode querer partilhar, ter esse desejo, e não o fazer. Não o faço, não o consigo, queria explicar-te e não sou capaz. É uma questão de conchas. Posso pedir-te perdão. Um perdão inconvicto, perdão de consciência pesada (será?) de um qualquer pedaço que terei em dívida. Qualquer coisa indefinida. O perdão fica sempre bem. Honesto, incoerente, concreto ou abstracto. É sempre um perdão. Não o peço, prefiro carregar a minha consciência. Nem sei se me perdoarias se somente deixarias arrastar os dias, quase sem saída. Um não perdão e uma guerra em troca, bem sabes. A guerra de mim, evidenciando-se minha essência amarela, ou pior (?) minha falta dela. Isso é o que queres ver sem ver, é ali que está a tua fronteira, aquela que te separa de mim sempre que chegas mais perto. Se passas és tu na minha pele.
A derrota, a minha na minha falta de solução, a tua na tua minha insolúvel solução.

Queria-o de verdade.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sabes?

Tenho medo quando está escuro e não tenho luz
Sabes onde posso comprar fósforos e fazer uma fogueira?

ossos

Estou partida
onde não existem ossos nem carne
Estou partida de mim, partida de nada
Partida só
Se eu reconhecesse a fragilidade das ligações
talvez me cuidasse melhor
Se eu me definisse
talvez me soubesse melhor
Protege-me daquilo que eu quero
Protege-me

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Pão ralado

O mundo anda louco, concluo. Talvez devesse fazer circular um aviso. Talvez seja meu dever partilhar a minha mais que vulgar ilação com os meus pares. E com os ímpares, que sempre me provocou algum nervoso miudinho isso de desprezar os ímpares. Seja 1 ou sejam 3, qualquer outro número primo ou mesmo sem nenhum tipo de parentesco.

Acho que os teus miolos fritaram. Eu disse-te, na minha esborratada tentativa de sensatez: “lume brando durante tempo demais também fode o refogado”. Olhaste-me. Depois disseste-me “E isso sabes das horas que passas ao fogão?”. “Sei das horas que passo contigo”. “Mal passaste mais que algumas horas seguidas comigo”. “Sei das horas que não passo contigo”. “Então não sabes”. “Sei”. E na conversa que não se seguiu entendi que discordavas, entendi que eu até concordava contigo na discordância da minha afirmação. Talvez não fossem teus os miolos. Talvez não fossem de ninguém porque talvez fossem só os meus. Tantas vezes eu estou ao avesso de mim que me parece difícil reconhecer o óbvio, identificar no espelho pálpebras que são de mim. Ponderei na libertação desta nossa conversa não tida, afinal se é nossa deveria tê-la partilhado contigo. Fiquei calada. Porquê? Não sei. Posso tentar inventar uma justificação mas eu detesto justificar tudo, precisamente porque o tento fazer vezes demais. Já, por outro lado, muito me agrada tentar inventar. Entre a invenção e a justificativa fico-me só em dúvidas lançadas. Acho que vou tentar panar um pouco mais os meus miolos. Se é para fritar que seja com um pãozinho ralado, só para lhe dar uma graça.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Se

Se eu soubesse pedia
Se eu conseguisse não ia
Lá, onde já sei que me perco
Por ali, que já sei que não gosto
Fico com o sabor preso debaixo da língua
Liberta-se de mansinho
E eu não sei cuspir no chão
Engulo
Engulo o travo feio
Seguro a vontade de asfixiar as papilas gustativas
só porque elas são anfíbias
Tudo muda de forma,
os formatos encontram-se para se verem
e gestos são formas desenhadas em nada
Para lá do que tu vês
para lá, onde não vês
é lá que está
Nenhuma presunção, não imagines
O que não vês eu também não vejo
Limitam-me os olhos e a visão
As cores sobram num paraíso que se desenha a preto e branco
É tudo tão simples
tão simples
Se pedisse um desejo,
daqueles que perdi quando deixei de acreditar,
pedia-te a ti

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Mostarda

Minha vida sentimental é como um pequeno frasco de mostarda,
Amarela
Pálida
Aquele ligeiro trago entre o picante e o amargo
Às vezes ponteada de pigmentos,
Outras só de consistência mole e homogénea
Enfim, como qualquer mostarda,
enjoativa

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Plantas

E se as vespas passarem a fazer mel?
E se eles, no inferno, chorarem nossa ausência?
Imagino-te a invocar o perdão que nem sequer sentes
Quase te vejo andando de costas,
olhos no chão
Assim podes dizer que cais
justificação lógica e absoluta
Fico sem força de repetir
Fico-me
Sento-me
Minhas costas doridas têm muitos mais anos que eu
curvadas por dentro,
curvadas nas sombras
Meus pés esfolados,
eu na cadeira,
a mão no queixo
e fico a ver-te sem que ali estejas
Abre-se um pano de palco invisível,
luzes ofuscantes projectadas pela minha testa
e ali estás tu naquele palco negro
Aqui, nesta cadeira velha,
rangendo, rachada, rija
estou eu
num cenário que são só de páginas envelhecidas
Que fizeste contigo?
Lês nos meus olhos o deserto que agora há?
Perdi todas as lágrima,
espremi lençóis molhados para não as esgotar,
implorei que não secassem
agora não tenho mais
Resta-me isto
ver-te daqui,
rodeada de distâncias tão fáceis de percorrer
e sentir-me só(mente)
É este cansaço de vozes frias,
azedas de tempo apagado que não volta
Esta mágoa em forma de repulsa
esta inércia dos meus dedos
Porque é que te negas?
Porque é que eu te aceito?
Onde está a audácia de te contrariar?
Para estar sendo precisei deixar-te,
bem sei que nunca me chamaste
Eu
Deixei-te
E agora, agora sou sempre assim
rodeada de distâncias
não quero nada perto de mim
não quero isto
não sei que quero

agitar, usar e deitar fora

tudo tem a sua utilidade e oportunidade
(e eu já tive a minha)

Depois

Sou casca de laranja deitada fora
Tanto importa que fique ou que vá
Sou casca,
depois de mastigados meus gomos,
cortados a faca a dente a fome
depois de cuspidos meus caroços,
rejeitados, sem sabor, sem nutrição
- desprezada a fonte de tudo.
Depois
pouco interessa que destino me dão
E eu tinha cor,
eu guardava meus gomos preciosos
eu os mantinha aqui plenos de água para aliviar tua sede
Sou casca,
Resta-me esperar pelos vermes que me aceitam no chão
neste chão
Resta-me fechar os olhos e não sentir
um dia talvez volte a estar naquele ramo, naquela árvore,
um dia talvez seja gomo caroço sumo
um dia talvez minha casca renasça, tenha valor.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Bem-te-quero

Quando o meu comboio passar
não te assustes
não tenhas medo
Ele passa, eu fico
Não lhe atires pedras
Ele passa, não pára
É só comboio de recolha

Se eu estiver distraída quando ele voltar
fecha tu as cancelas por mim
(tenho de me proteger)
Mas não perguntes
Ele faz tanto ruído quando passa
silencia-me
não consigo responder, não sei se consigo ouvir

Ficas do meu lado?
Reconheces os meus olhos tapados de cabelos?
Ajudas-me a remendar carris depois?

Podemos plantar malmequeres do lado de lá
Talvez um dia o comboio pare
E, cansado, por fim descanse no cais terminal
O seu fim não sou eu
Talvez os malmequeres cresçam tanto que as fendas dos carris se deixem de ver

Bem-te-quero

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Incompleto

Gosto de coisas, algumas que toco, outras que cheiro.
Gosto das coisas que guardo, têm segredos que ninguém vê,
marcas, impressões digitais, transparências que lhes pesam
Gosto de gostar de coisas pequenas
círculos, esferas, a ausência de arestas,
não há um princípio e não lhes posso pedir um fim
Descubro que nem tudo tem regras nem excepções
O centro é só um ponto
Gosto dos retalhos incompletos, de peças, de partes
Gosto de procurar, de me enganar, de me corrigir,
de pedir desculpa, sentir o desejo do perdão
Gosto das coisas simples,
da banalidade das minhas pernas sobre as tuas enquanto descansam meus pés doridos
Gosto de gravar instantes com um cheiro ou um som, uma porta ou um segredo
Descubro que às vezes portas são segredos

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Da próxima vez

Aproveito que estou só
Agora posso conversar comigo.
Encosto-me, bebo o chá
Respiro o cheiro do caramelo
Gosto de ser tua amiga
Gosto quando me fazes rir e me beijas a seguir
Andei de mãos dadas contigo
Da próxima vez vou querer andar às cavalitas

segunda-feira, 7 de abril de 2008

L

Deitei-me com a lua
Fiz amor com ela
Com o seu sopro frio
um pó estrelar fez borbulhar as minhas veias
minha circulação tonta, embriagada
fez meus glóbulos brancos dançar tangos com os vermelhos
Mais sentidos sentindo,
minha lua sabe-me tão bem
sabe-me a prata liquida
sabe-me de cor
E os cheiros, mil vapores e dedinhos de odores
minha lua não cheira só a satélites
antes me incendeia em quentes ventos,
desertos de canela em ninhos de pássaros
Minha lua é como um quadro
uma tela que eu pinto com formas e farpas e figos
Como desse quadro,
minha lua alimenta-me da água do rio
Só mais um pouco,
estou quase na outra margem

domingo, 6 de abril de 2008

(entrelinhas)

Não te controlo os pensamentos, mas gosto de me deitar neles

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Pés

Sabes quantas horas perdi sem dormir? Sabes quantas frases ingénuas implodi na minha garganta? Perco tempo demais em conversas da treta. Gostava de não ter mais de esquecer. Não reconheço a liberdade, sinto-me todos os dias numa jaula em circuito fechado. O meu erro sou eu.
Na minha aparente estabilidade, abrem fendas de estrutura. Constato que meus cálculos estavam errados. Não sou nada disto. Não sei que sou fora disto. E é isto que me preocupa.
É condição humana a recriação e a metamorfose? Se eu me sinto lagarta como posso ganhar asas para saltar daqui? Se eu gosto do meu casulo, como posso querer deixá-lo?
Inventem-me uma rotina feliz ou levem-me daqui para fora. Para lado algum, pouco importa. De qualquer forma olho atrás e não quero, olho para o fundo e não sei o horizonte.
Já nem sei se tenho pegadas, meus sapatos caem-me dos pés. Podem os pés estar em processo de regressão? Acho que os meus estão mais pequenos hoje do que estavam ontem. Será por isso que perco equilíbrio?

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Chave

Existo, sou (factualmente)
Faço, sinto, sopro (aleatoriamente)

Como existes tu (neste momento)?

Recorda

Pausa

Está calor lá fora e é só Abril
Tiro os sapatos que ninguém vê debaixo desta mesa,
sento-me do meu jeito
(uma perna sobre a outra sobre a cadeira)
Vejo as várias janelas abertas no meu computador
e são as janelas fechadas do corredor que eu queria abrir
Impaciento-me
quero cheirar as flores da primavera e fico aqui estagnada

terça-feira, 1 de abril de 2008

No sofá

- Já leste Nietzsche?
- Não mas já vi umas tretas
- Eu procurei mas não entendi a ponta de um cu… o tipo era filósofo, qualquer coisa de não acreditar em moral…
- Ponta de um cu…? Não era suposto ser “ponta de um corno” ou só “um cu”? O cu é redondo… não tem ponta
- Se for um cu Niilista…

Jantar no Inferno

Dominas-me
A tua génese contraria todos os meus valores
todos os meus pudores
Fazes num estalar de dedos
com que salive só de imaginar o prato
Na ponta da língua
libertas todo o veneno que eu bebo
Agitas-me, abanas-me, desorientas-me
sou eu sem ser dona de mim
Tua voz até num sussurro faz vibrar meus tímpanos
fazendo vibrar meus neurónios
que vibram em mim
espalhando, como óleo sobre o meu corpo,
esses químicos que me impelem a física
reacção em cadeia
determinado este estado vibratório
terminado em tuas mãos
Tu que és prisioneiro em mim
eu que sou tua presa
Come-me,
lambe os dedos
deixa suja a tua boca
Bebe-me,
leva o copo à boca
suja a toalha de vinho
Sente-me escorrendo
meu estado líquido
tem forma feita para tu sentires
Sacia-te
Esgota a fome e a sede
tens tudo aqui
Não me esgoto eu em ti
O fim é sempre só mais um princípio